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O Moderno revisitado: habitação multifamiliar em Lisboa nos anos de 1950, publicado pela Direcção Municipal da Cultura/Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa (CML) na colecção “Lisboa: arquitectura e urbanismo”, é uma edição adaptada da dissertação de Mestrado em História de Arte (FCSH-UNL) de Ricardo Costa Agarez – Arquitectura de habitação multifamiliar. Lisboa anos 1950.
     O autor pretendeu estudar os prédios de arquitectura corrente projectados na década de 1950 e destinados a habitação multifamiliar, “especificamente os edifícios de pequena ou média dimensão que ocuparam, no âmbito de uma actividade quotidiana eminentemente económica – a construção para rendimento –, parcelas pré-existentes e limitadas do tecido urbano estabilizado da cidade” (p. 12).
     No essencial, o livro trata de ajudar a compreender o processo de substituição de construções obsoletas nos bairros mais antigos, ou de completamento de parcelas limitadas nos bairros mais recentes, com edificações que, pelo menos no que respeita às fachadas, seguem o léxico arquitectónico moderno mais ou menos informado pelo Estilo Internacional que se globalizou após a II Grande Guerra. Um dos principais objectivos deste trabalho é, justamente, o de tentar compreender em que medida é que a essa imagem exterior de mo-dernidade correspondem fogos de concepção igualmente moderna. É também significativa a vontade de perceber qual o peso da formação de base dos projectistas (em arquitectura ou engenharia civil) na qualidade dos resultados obtidos, tentando aferir-se o papel dos autores na aproximação ao modelo “máquina de habitar” e na respectiva implantação em Lisboa em confronto com os constrangimentos legais e com a margem de lucro desejada pelo promotor, avaliando-se a importância da acção da CML, através dos técnicos camarários, na abertura do caminho para a Arquitectura Moderna.
     Depois da habitual Introdução, onde explica a origem da obra e os seus principais objectivos e contornos, Ricardo Agarez começa por dar a conhecer, no Capítulo 1, o contexto urbano em que esta arquitectura aparece, centrado na pers-pectiva da edilidade lisboeta. Desde a “actividade planificadora” e “infra-estruturadora” da CML, ao modo como esta encarava a iniciativa particular e o valor arquitectónico, ou estético, dos projectos apresentados para licenciamento (de onde resultou uma discussão institucional sobre o “Problema Arquitectónico de Lisboa”), passando pela contribuição do Município, nesta década de carência de alojamento, para a resolução do “Problema da Habitação”.
     No Capítulo 2 utiliza um interessante processo comparativo entre o Regulamento de Salubridade das Edificações Urbanas (RSEU, 1903), o Regulamento Geral da Construção Urbana para a cidade de Lisboa (RGCU, 1930) e o Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU, 1951), para tratar de questões que vão da salubridade à estética urbana, enquanto condicionantes da arquitectura de habitação multifamiliar.
     No Capítulo 3 procura delimitar um corpo de “constantes” fundamentais da arquitectura do Movimento Moderno focadas na habitação multifamiliar, apoiando-se em produção teórica (e prática) internacional (Le Corbusier, Klein, Griffini, etc.) e avaliando a sua divulgação e projecção em Portugal/Lisboa, nomeadamente através de textos e projectos publicados, assim como de alguma obra construída.
     O Capítulo 4 é verdadeiramente o centro desta obra, mesmo em sentido literal, já que ocupa as 120 páginas centrais (da 108 à 227) das cerca de 320 do volume. O autor analisa aí 115 exemplos seleccionados a partir dos 160 apresentados na tese, por sua vez resultantes de uma selecção dos mais de 200 estudados. Faz uma análise crítica de cada um dos edifícios ou conjuntos edificados, bem apoiada documentalmente, dividindo a cidade, urbanisticamente consolidada, em três grandes zonas: a “Zona Central Norte” (Avenidas Novas, Alvalade e “margens das Avenidas Novas”); a “Zona Central Oriental” (delimitada, grosso modo, pela Av. da Liberdade e pela Av. General Roçadas); a “Zona Central Ocidental” (delimitada, grosso modo, pelo eixo Av. da Liberdade/Parque Eduardo VII e pelo arco da circunvalação de 1852, em grande parte descrito pela Rua D. Maria Pia, incluindo Campolide). Conclui com um sub-capítulo dedicado à integração das artes, tema moderno e na ordem do dia nos anos de 1950.
     No Capítulo 5, Ricardo Agarez ensaia pequenas visões de conjunto dos edifícios de habitação multifamiliar realizados nos anos de 1950 por cada arquitecto, engenheiro, ou cada parceria de autores, no âmbito da área de Lisboa considerada. Como complemento junta-lhe um anexo com pequenas biografias profissionais destes projectistas.
     Finalmente, o Capítulo 6 é o espaço das Considerações Finais que são desmultiplicadas tematicamente.
     Quis, portanto, o autor, amaciar as suas conclusões terminando com umas “Considerações Finais”. No entanto, ao longo da obra, vai não só problematizando como tirando conclusões parciais, por vezes no meio do texto, frequentemente no parágrafo final dos capítulos ou subcapítulos, ou mesmo no fim de muitas das análises individuais dos edifícios. E, claro, as conclusões também estão disseminadas pelas considerações finais.
     De entre outros aspectos conclusivos, porventura até mais importantes, salientaria: o facto de, tal como na Lisboa do primeiro modernismo, o léxico moderno ser facilmente manuseado por engenheiros no desenho de fachadas, embora nesta década de 1950 esses profissionais dificilmente desenhem fogos verdadeiramente modernos, ao contrário do que acontece com boa parte dos arquitectos; o facto de alguns arquitectos, cujo talento ficou comprovado com outros projectos e outros programas, acompanhando os promotores na lógica do lucro fácil, por conformismo ou por comodismo, investirem algum trabalho nas fachadas mas muito pouco na concepção dos fogos; ou o facto de, nesta década, a posição de alguns técnicos da CML pugnar pela defesa da qualidade e da modernidade arquitectónicas em situações em que os projectistas estariam dispostos a ceder a uma concepção e a uma expressão mais conformistas.
     O livro apresenta uma escrita escorreita e um vocabulário específico geralmente acertado e preciso, aqui e ali, certamente picado das memórias descritivas, pareceres, artigos ou outros textos de época. A informação tratada e o rigor procurado tornam-no indiscutivelmente útil para os historiadores da Arquitectura, para os estudiosos do património moderno, para os próprios técnicos da CML e para os interessados em geral. Apesar do tratamento gráfico cuidado, claro e agradável (é só pena as plantas não terem sido reproduzidas todas à mesma escala) e da adaptação que a dissertação sofreu para ser publicada, a obra manteve, quanto a mim acertadamente, a profundidade e alguma coisa do formato académico, não se apresentando, portanto, como uma obra de divulgação.
     Há, contudo, alguns aspectos que surgem insuficientemente explicados, nomeadamente no que se refere aos critérios de selecção dos casos apresentados no Capítulo 4.
     Por um lado porque, considerando o perímetro da malha urbana consolidada na qual se inserem os casos de estudo, não se percebe porque é que foram escolhidos uns  imóveis e preteridos outros, embora se possa adivinhar que, como acontece normalmente neste tipo de trabalhos, a disponibilidade de material para estudo, primeiro, e publicação, depois, possa ter tido influência, mas continuam a faltar os critérios de natureza científica.
     Por outro porque, no contexto da opção pelo estudo da habitação multifamiliar corrente, maioritariamente constituída por prédios de rendimento de pequena e média dimensão, com os constrangimentos à “modernidade” que a implantação na malha urbana consolidada implica, parece frágil a justificação para a inclusão neste estudo da operação urbanística da Av. Infante Santo, no seu todo, ou dos edifícios do lado sul da Av. dos Estados Unidos da América. Os últimos sob a alegação de que, de entre os grupos de blocos modernos de habitação colec-tiva existentes no Bairro de Alvalade, seriam os menos conhecidos, ambos os casos enquanto “excepções que, no interior deste estudo de casos, assumem a função de modelo face ao qual cada elemento do universo delimitado pode ser aferido” (p.13). Terá de ser o leitor a fazer essa aferição já que o autor, pelo menos explicitamente, não a faz.
     Não deixa por isso de ser um trabalho de investigação francamente meritório que acrescenta conhecimento numa área de estudo – a da habitação corrente – com poucos cultores, independentemente da cronologia. Parece-me, no entanto, que a consciência desse mérito não deve menosprezar o trabalho anteriormente realizado tanto na área específica da História da Arquitectura Portuguesa do século XX como nas áreas da História da Arquitectura e da História de Arte genericamente praticadas em Portugal. Admito que as opções da selecção bibliográfica sejam discutíveis, mas acho que o desejo de explorar as fontes primárias levou o autor a subavaliar alguma bibliografia, particularmente alguns títulos da bibliografia que considerou válida e que mereceriam outra atenção, quanto mais não fosse para corrigir, discordar ou reposicionar-se em relação ao trabalho anteriormente realizado. Já me parece definitivamente injusto afirmar que o processo de investigação que seguiu teve “uma carga heurística sobre fontes primárias que é pouco comum como base de uma dissertação para conclusão de um mestrado” (p.13), sobretudo sabendo que desenvolveu e defendeu a sua dissertação no contexto do Mestrado de História de Arte da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nova de Lisboa.|

 


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